Falando do ponto de vista estritamente profissional ontem eu deveria ter assistido ao jogo do Mengão. Mas preferi ficar bebendo e papeando com a rapaziada sangue puríssimo da Confraria do Urublog que se reuniu pela terceira vez, agora no Baixo Gávea. Me julguem.
Ficamos naquela resenha feroz e deixamos rolar, como no Hipódromo não tem mais televisão de quando em quando aproveitávamos a saidinha pro cigarro pra espiar na televisão do BG Bar como a pelada se desenrolava e na volta atualizar o placar para os não fumantes. Tudo tranquilo, o Flamengo provou que é capaz de jogar sem a minha atenta supervisão e sapecou o Resende. Ufa! Fiquei bem mais tranquilo ao saber que posso fazer outra coisa na hora do jogo do Mengão no carioqueta.
Mas o que eu tinha pra falar sobre o jogo acabei falando no vídeo da amiga Nivinha, que também prestigiou o seleto evento mulambo. Pra não ser repetitivo vou contar uma outra história sobre o Flamengo. Na verdade é uma história sobre a camisa do Flamengo. Uma coincidência interessante que só fui capaz de perceber por causa dos papos inteligentes que rolaram na mesa do boteco com os caras da confraria.
Entre muitos temas falamos, com óbvio e indisfarçável orgulho, da esculachante homenagem feita pela Deutscher Fußball-Bund ao Flamengo na segunda camisa dos tedescos para a Copa de 2014. Indubitavelmente uma das maiores pagações de pau da história do futebol mundial. Uma homenagem altissonante, a qual o Flamengo logicamente faz jus e que deixou a arcoirizada arrancando as calcinhas pela cabeça como se não houvesse um amanhã.
Assistir a torcida arco-íris em trabalho de parto doloroso e prolongado por causa de um troço desses é muito bom, tão bom e divertido que acaba encobrindo a poesia histórica e cheia de significados que envolve essa homenagem dos alemães. Porque os alemães, e não estou falando dos alemães da adidas, desempenharam um papel vital, apesar de sem querer, na construção de um dos nossos símbolos mais poderosos, a camisa rubro-negra, o Manto Sagrado.
A gênese do futebol do Flamengo é história por todos conhecida. Ninguém mais tem tempo pra catecismo, vamos pular a parte em que os Pais da Nação estavam na vidaloka. Como se sabe a então vanguardista modalidade esportiva não foi uma unanimidade no Flamengo de 1912, houve forte resistência. Principalmente por parte dos remadores, os popstars da época, que não consideravam o esporte bretão suficientemente másculo para compartilhar as cores com que eles tocavam o terror nas regatas. Pelo menos não do jeito como aquele esporte de elite era praticado nas Laranjeiras.
Depois de hábil e longa negociação conduzida pelo canonizável Alberto Borgeth, apesar de ex-jogador de futebol do Fluminense também um remador do Flamengo (existem boas ações que são tão boas que redimem todos os pecados pregressos), acabaram aceitando a criação do Departamento de Esportes Terrestres no clube. Com a condição de que os players (ui!) usassem outro uniforme que não a clássica camisa de listras horizontais em vermelho e preto. Criou-se então a mitológica Papagaio de Vintém, a camisa da nossa estreia contra o Mangueira, no campo do América na Rua Campos Salles em 3 de maio de 1912.
Uma camisa bonita, mas com a qual não ganhamos nada em 1912 e nem 1913. Os remadores do Flamengo, campeões toda hora, claro que tiravam onda com os jogadores de futebol, mas acabou ficando todo mundo amigo. Amigos, sim, mas nada de promiscuidades com as camisas do Flamengo, a vermelha e preta só no remo.
Querendo mudar o astral pra ver se saía da fila, e paravam de serem zoados pelos remadores, o pessoal do futebol criou uma segunda camisa para o futebol, a não tão famosa Cobra-Coral. Que era igual à camisa do remo no essencial, as listas vermelhas e pretas horizontais. Mas para manter o combinado com os remadores, entre o vermelho e o preto interpunham um tímido friso branco.
Estreamos a nova camisa em 10 de maio de 1914, no 3 x 0 sobre o Rio Cricket, e com a Cobra-Coral fomos Campeões Cariocas de 1914. A camisa acabou se popularizando e o Flamengo jogou com a ela até maio de 1916. E talvez o Mengão estivesse jogando com ela até hoje se não fossem os alemães. Bem, pra ser justo, alemães, austro-húngaros, ingleses, franceses, italianos, otomanos e um sérvio. E não, não estou falando do Petkovic.
No dia 28 de junho de 1914 Gavrilo Princip, anarquista bósnio de etnia sérvia, assassinou a tiros o Arquiduque do Império Austro-Húngaro e a Duquesa Sofia, em Sarajevo, na Bósnia. O atentado foi as Torres Gêmeas daquele tempo. Provocou um furdunço generalizado entre as superpotências do século retrasado, que ficou conhecido como I Guerra Mundial. Conflito onde o Império Alemão, comandado pelo Kaiser Guilherme II, ficou com o papel de bandido. A chapa esquentou legal na Europa e o Brasil, que só queria vender seu café em paz, declarou-se neutro e foi cuidar da vida.
O pau comeu solto durante dois anos e os brasileiros nem estavam ligando muito pra guerra europeia, até que os alemães deram mole com a gente. Em 3 de maio de 1916 um navio brasileiro, o Rio Branco, foi afundado por um submarino alemão enquanto navegava em águas internacionais. O navio a vapor brasileiro estava fretado por ingleses e tripulado por noruegueses, mas o seu afundamento causou verdadeira comoção nacional.
Como não é de hoje que a galera gosta de uma bagunça, em algumas capitais do país, os estudantes, com suas fileiras engrossadas pelos arruaceiros de sempre, foram pras ruas tocar o terror. E quebrar lojas, pichar casas e propriedades alemãs. No Rio, entre outros lamentáveis casos de violência antigermânica, o inofensivo Bar Germânia, na beira da bucólica lagoa Rodrigo de Freitas, intimidado pelos protoblackblocs, teve que mudar de nome e se transformar no Bar Lagoa. Felizmente, o bar está funcionando até hoje quase com o mesmo cardápio.
Ora, lembrem-se que a Cobra-Coral, a camisa com a qual o futebol do Flamengo ia ficando cada vez mais popular na cidade, era exatamente igual à bandeira do odioso Império Alemão. A revolta popular contra tudo que pudesse ser considerado germanófilo era o argumento que faltava aos jogadores para que finalmente pudessem adotar, em campo, a camisa que já era sucesso no mar.
Dirigentes, remadores e futebolistas, finalmente fechados com o certo, patrioticamente e em nome da paz mundial, viram que era hora de mudar a camisa de futebol do Flamengo. Visionários, arrancaram os frisos brancos entre as listras vermelhas e pretas. Eles ainda não sabiam, mas estavam fazendo história.
No dia 4 de julho de 1916, na inauguração de seu primeiro estádio, na Rua Paysandu, o Flamengo venceu o amistoso contra o São Bento por 3 x 1 usando pela primeira vez a nova, e já então eterna, camisa rubro-negra. E mostrou ao mundo, desde então embasbacado com tamanho poder, a mais prodigiosa vestimenta sócio esportiva do planeta. Foi assim que nasceu o místico Manto Sagrado que nós veneramos.
Conhecendo esses detalhes podemos perceber que a camisa rubro-negra da Seleção Alemã é muito mais que uma homenagem ao Flamengo no ano de Copa no Brasil. Serve como uma poderosa lembrança de quem já fomos e a que tipo de mundo já pertencemos. É o fechamento de um ciclo de 100 anos, é a finalização rebuscada de uma gigantesca mandala, é a pirueta final de um número de acrobacia no campo das relações exteriores, é o triunfo da justiça poética. E é mais uma prova eloquente de que o Flamengo é maior que a vida.
Mengão Sempre
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Rubro-negro bem vestido, me ajuda a acabar com os perebas no time do Flamengo. Entra logo no sócio torcedor.
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