Nélio se tornou um sujeito frio nos tratos que dá ao universo da bola. Não quebra mais o controle da televisão ao ver jogos do Flamengo, como chegou a fazer no passado. Ele vive o futebol como uma profissão - e só. O mecânico conserta carros, o padeiro assa pães, Nélio joga bola. Pudera: as cicatrizes que o esporte deixou nele não se resumem àquelas marcadas na pele depois das cirurgias no tornozelo e no púbis (duas vezes). Com uma década de vida como jogador profissional, o meio-campista teve que aprender a redimensionar suas noções de tempo e espaço: viveu revoluções em sua carreira muito cedo, quando ainda era um adolescente, e logo saiu a permabular por tudo que é canto do Brasil. Aos 27 anos, coleciona arrependimentos, experiências e aprenzidados. Grande promessa rubro-negra, acabou sendo mais um arremessado na areia movediça das comparações com Zico. Hoje, longe do estrelato com o qual tanto flertou, prefere valorizar cada dia de paz no Audax, clube de São João do Meriti recém-alçado à elite carioca.
Dez anos mudaram cada pequeno aspecto da relação de Nélio com os campos. Em 2002, ele era o futuro, fazia planos, tinha pressa; em 2012, é interrogado sobre o passado, não alimenta grandes esperanças, dá tempo ao tempo. E a origem da transformação é bastante clara para o atleta: a briga que ele teve com o Flamengo quando ainda dava seus primeiros passos no mundo dos adultos - e da qual ele se arrepende ao extremo.
- Quem fez a m... fui eu. Quem colocou o Flamengo na Justiça fui eu. Quem não engoliu sapos quando deveria engolir fui eu. Hoje, caras que estavam em um nível abaixo do meu estão ricos. Mas nunca culpei ninguém. O erro foi meu. Não posso culpar o Flamengo por nada, cara. O culpado fui eu. Quem começou a briga fui eu.
Nélio era a esperança, era a salvação. E era um adolescente. Ele carregava a responsabilidade de ser, desde muito cedo, comparado a Zico, tratado como craque, paparicado pelo clube mais popular do Brasil. Era camisa 10, de cabelos claros, franzino, habilidoso. Em épocas de vacas esqueléticas, fazia o elo com um passado de conquistas. Mas tudo ruiu.
Depois de ser o principal nome da base desde a pré-adolescência, Nélio foi chamado para os profissionais em 2001, por Zagallo, para um jogo contra o Vasco. Ele foi bem no empate por 0 a 0 pela Taça Rio daquele ano. Mas já estava combinado que voltaria para a base. No ano seguinte, surgiram novos chamamentos para o elenco principal, mas sempre intercalados com retornos para os juniores. Nélio não tinha sequência. E isso desencadeou uma roda de desentendimentos: quanto menos jogava, mais ele se impacientava; quanto mais ele se impacientava, mais a diretoria ficava incomodada; quanto mais incomodada ficava a diretoria, menos ainda ele jogava (relembre no vídeo acima). Era uma bolha pronta para explodir. E aí chegou o Vasco para furá-la.
O rival rubro-negro soube da insatisfação e decidiu que tentaria levar o menino para São Januário. Nélio tinha atrasos no Fundo de Garantia e no salário. Era a brecha para buscar no tribunal a saída da Gávea. Mas o Flamengo ficou sabendo da influência do Vasco no processo. E ameaçou dar o troco na mesma moeda. A diretoria cruz-maltina recuou. E o jogador ficou à deriva - completamente queimado em seu clube e sem um porto seguro no qual atracar.
- Vou morrer com isso. Foi o grande erro da minha trajetória.
Problema pouco é bobagem. Nélio conseguiu ser emprestado, como era seu desejo, para o Atlético-PR. Lá, fraturou o tornozelo. Voltou ao Flamengo por baixo, sem conseguir jogar e com a imagem arranhada. Era o início de uma história sem fim de transferências, passagens curtas e novas lesões. Ele foi operado no púbis duas vezes - a segunda cirurgia foi necessária para corrigir a primeira. Acabou defendendo clubes como Cabofriense, Brasiliense, Paraná, Cruzeiro, Fortaleza, Joinville, Pelotas, Tupi e Corinthians-AL. Rejeitou, já com passagem comprada, uma transferência para o Azerbaijão. Hoje, tem uma certeza: não foi talento o que faltou para que estourasse como o craque que prometia ser.
- Tenho perfeita convicção de que não foi por falta de bola. Pode parecer falta de modéstia, e não é. Mas tenho certeza disso.
Desilusões
Nélio se culpa por não ter aproveitado melhor o Flamengo (veja, no vídeo abaixo, golaço do jogador pela Copa São Paulo de Futebol Júnior de 2003). Reconhece que foi afobado. Mas também carrega decepções com o clube que amava. Dentro da Gávea, ele se sentiu um produto. Resultado: boa parte do carinho que tinha pelo Rubro-Negro foi embora junto com ele.
- Eu era flamenguista doente. Ia para o Maracanã com meu pai. Quebrava o controle em casa quando o time não vencia. E perdi o tesão totalmente. Não torço. Vejo poucos jogos. Quando vejo o estádio lotado, mexe um pouco, mas não tenho tesão nenhum. Ouvi muita coisa e vi muita coisa que não imaginava. É a instituição onde fui criado desde os dez anos, e eu era uma mercadoria. Eu vi isso. Escutei isso. Não quero mais saber também...
Cinco minutos de conversa com Nélio bastam para perceber que ele tem personalidade forte. Em um meio por vezes hipócrita e que quase sempre demanda diplomacia, o jogador talvez tivesse futuro melhor se fosse mais maleável. Mas ele sempre falou o que pensava. Com isso, comprou brigas com treinadores e dirigentes.
- Eu, com 17 anos, se a imprensa me ligava, dava porrada em treinador. Achava que com meu futebol eu ia resolver. Mas nunca fui rebelde. Sempre treinei pra c.... Sempre cheguei no horário. Nunca faltei treino. Mas houve épocas em que estava f... do púbis. Não conseguia, cara. Não conseguia chutar a gol! Hoje, sou um cara muito mais razoável. Porque tomei muita porrada. Aí era aquilo: ou eu aprendia a lidar com isso ou eu largava.
E Nélio pensou em largar. Cansou. Chegou a imaginar que não teria mais condições físicas de jogar - agradece muito ao médico Joaquim Grava por ter aberto as portas do Corinthians para ele em sua segunda cirurgia no púbis. Aos poucos, conseguiu retomar a carreira. E encontrou a solidez de que tanto precisava no Audax.
Pés no chão
Em uma carreira tão turbulenta, passar um ano inteiro no mesmo clube já seria motivo de comemoração para Nélio. Mas não foi só isso. No Audax, o jogador encontrou boa estrutura para trabalhar e ajudou a levar o clube pela primeira vez à primeira divisão estadual. Fez três gols na campanha de acesso à Série A. Está feliz em São João de Meriti, disposto a renovar o contrato - que se encerra em 12 de dezembro. Mas também recebe convites de outros clubes.
É um recomeço. Nélio, porém, não se empolga. Acha improvável que volte a defender um clube grande no Brasil - em boa parte, ele admite, pela mancha que a briga com o Flamengo colocou em seu currículo. Gostaria de jogar a Série B nacional, quem sabe, ou rumar para o exterior.
- O que penso do futebol é muito claro: jogar uma competição em um nível bom e ir pra fora. Pegar um Oriente, quem sabe. Hoje, se pintasse Azerbaijão, eu iria. O futebol me deu uma condição razoável de vida, mas não fiquei rico com ele. E tem que ser fora do país. Aqui sempre vai ter o ranço. Vou ter que jogar cinco vezes mais do que outro cara. Lá fora, ninguém me conhece. Eu sei que não vou sair do Audax depois de fazer um campeonato e ir, sei lá, pro Atlético-MG. Isso é utopia. Mas fora do país ninguém me conhece. Posso começar do zero. Aí vai ser só pelo futebol.
Conselho a Adryan
O caso de Nélio, embora exponencial, não é único. O Flamengo costuma ter "novos Zicos" que, claro, não chegam ao patamar do maior ídolo rubro-negro. Sempre que vê um garoto habilidoso, meio-campista, de estrutura física parecida com a do Galinho, o atleta do Audax resgata o que aconteceu com ele.
É o caso de Adryan agora. Quando entra, o garoto vai bem. E aí renascem as comparações. Nélio teme que o menino seja engolido pela má fase do clube. E sugere que ele não se afobe.
- Seja paciente. Eu me arrependo de não ter sido. Muitos outros que não jogavam a bola que eu jogava se deram bem. Espere o momento bom, o momento propício. O Flamengo vai encaixar.
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