Da insatisfação, nasce a dissidência; da dissidência, nasce um novo time; do novo time, nasce um clássico; do clássico, nasce a rivalidade, floresce a mágoa. Faz quase 100 anos. No próximo sábado, 7 de julho, será comemorado o centenário do Fla-Flu - um desses duelos que moldaram o futebol brasileiro. É uma história que resiste ao tempo, que acumula causos, que desemboca no imaginário de novos torcedores. E que começa nas Laranjeiras, diante da percepção de poucos homens, sem a atenção dos jornais da época, como se fosse uma partida qualquer.
Não era. Um século depois, o GLOBOESPORTE.COM reuniu, nas sociais do palco daquele jogo, frutos da tarde de domingo de 100 anos atrás. José Luiz Bello é neto de José Bello, que disputou o primeiro Fla-Flu pelo Fluminense. É tricolor em cada fio de cabelo. Armando Amaral é neto de Píndaro de Carvalho Rodrigues, atleta do Flamengo naquele duelo precursor de 1912. E é rubro-negro em cada poro do corpo.
Seus ascendentes são simbólicos para tudo que aconteceu há 100 anos. Eles resumem bem os dois lados: o dos que foram e o dos que ficaram. Píndaro foi um dos nove jogadores que se rebelaram no Fluminense e decidiram sugerir a outro clube da cidade, o Flamengo, que passasse a ter um time de futebol. Bello foi um dos atletas que o Tricolor chamou às pressas para poder ter uma equipe no campeonato daquele ano. Sequer era jogador de futebol. Era tenista.
Foi na pensão da Rua Almeida, no quarto de Píndaro, pertinho das Laranjeiras, que os nove rebeldes decidiram deixar o Fluminense. O processo foi capitaneado por Borgerth, cuja presença no time era exigida por outros atletas - e rejeitada. Foi ele quem levou ao Flamengo a sugestão da criação do time de futebol em um clube até então especializado em remo. Não tinha ideia de que estava iniciando a formação da maior torcida do Brasil.
Além de Borgerth e Píndaro, o grupo dissidente teve Armando de Almeida, o Galo, Emmanuel Nery, Ernesto Amarante, Gustavo de Carvalho, Lawrence Andrews, Orlando Sampaio Mattos e Othon Baena de Figueiredo. A troca foi concretizada na véspera de Natal de 1911. Deles, apenas Lawrence Andrews não enfrentaria o ex-clube sete meses depois. Todos os demais seriam surpreendidos pelos antigos companheiros. Seriam derrotados.
Píndaro marca, mas Flu, de Bello, é quem vence
O Fluminense tinha o melhor time do Rio de Janeiro. Deixou de ter quando boa parte de seus titulares trocou de lado. Aí foi o Flamengo quem passou a ser visto como potência de um esporte que ainda não conseguia ser mais prestigiado do que o rowing (remo) e o turf, como diziam os jornais da época. Antes de enfrentar o Fluminense, a equipe rubro-negra havia marcado 30 gols nos primeiros quatro jogos de sua história: vitórias de 16 a 2 sobre o Mangueira, de 6 a 3 no América e de 7 a 4 no Bangu, além de derrota por 2 a 1 para o Paysandu. Era a enorme favorita para a partida.
Mas lá em 1912, quando ninguém tinha noção do que seria o Fla-Flu, quando a abreviação sequer existia, começou a ser desenhada uma tradição do clássico: o desmoronamento dos favoritismos.
A equipe tricolor ganhou. Com um time remendado, encarou de frente a força do rival e venceu por 3 a 2. Diante de 800 torcedores, surpreendeu de cara, ao abrir o placar com Edward Calvert, logo no primeiro minuto. Arnaldo, porém, logo empatou. No segundo tempo, o Fluminense voltou a ficar na frente, com James Calvert. Píndaro, o avô de Armando, empatou mais uma vez. Mas estava decidido que o primeiro Fla-Flu não terminaria empatado. Barthô, quando o jogo caminhava para o fim, deu a vitória ao time da casa.
A rivalidade nascida da mágoa
Se quiser briga, pergunte a José Luiz Bello, o neto de Bello, se ele é mesmo tricolor. Ou questione Armando Amaral, o neto de Píndaro, sobre ele ser efetivamente rubro-negro. Passados 100 anos, os dois torcedores encarnam o sentimento nascido em 1912 - uma rivalidade germinada na mágoa.
Foi por um incômodo com os rumos do time do Fluminense que os nove jogadores debandaram para o Flamengo. Saíram magoados. E deixaram magoados aqueles que seguiram no clube tricolor.
A insatisfação com o Flamengo passou de geração em geração na família Bello. Ele não conheceu o avô, mas ouviu de seu pai os relatos de rivalidade.
- Quem formou essa equipe, formou por amor, para não acabar com o time de futebol, que era a tradição do Fluminense. No primeiro Fla-Flu, ninguém imaginava a vitória. Ninguém esperava. Foi aí que começou. Teve alguma coisa de diferente, e acho que foi a própria rivalidade entre os jogadores. Meu pai contava as histórias de um pé atrás com o Flamengo. Ele não suportava flamenguista. E falava o mesmo do meu avô. Quem ficou, não gostou da cisão. Teve um racha. Todos eram amigos, porque se conheciam de clube. Todo mundo morava por aqui. Essa proximidade deve ter criado um pé atrás com todo mundo que saiu, o que aguça a rivalidade. De lá para cá, não tem nenhum flamenguista na família. A cultura do Fluminense está dentro de mim. Sou tricolor desde antes de nascer - comentou.
José Luiz Bello jogou futebol por apenas dois anos. Foi só para quebrar um galho. Depois, voltou ao tênis. Foi uma trajetória bem diferente da de Píndaro, que começou jogando em São Paulo, passou pelo Fluminense e então rumou para o Flamengo, onde foi um dos alicerces dos primeiros times. Foi a campo pela seleção brasileira. E treinou o Brasil na Copa do Mundo de 1930.
Píndaro era um sujeito tímido, recluso, que não gostava de falar sobre seus feitos em campo. Apelidado de "Gigante de Pedra", era um zagueiro firme. Virou médico. Fora dos campos, pouco mencionou o Fla-Flu de 1912, como se não tivesse noção de quão histórica era aquela partida. Mas deixou na família o sangue rubro-negro, apesar de também ter defendido o Fluminense.
- Ele não era de exposição. Não era de falar. Era mais recluso. Afastou-se do futebol quando veio o profissionalismo. Porque ele era um profissional no amadorismo: treinava, se preparava sempre. Tanto que ficou três, quatro anos sem jogar e foi para a seleção brasileira. Tinha um preparo muito grande. Mas não era de ficar contando. Nunca foi de contar dele. O que sabemos, é por terceiros. (...) Mas era rubro-negro. Jogou no Fluminense, mas teve um trauma. Se não tivesse saído, talvez seria torcedor do Fluminense - disse Armando.
Os 'Irmãos Karamazov' que todos demoraram a entender
Nelson Rodrigues era um cronista de futebol, de Fluminense e, em especial, de Fla-Flus. Adorava o clássico. Foi ele quem disse que o Fla-Flu surgiu 40 minutos antes do nada. E foi ele quem comparou os rivais aos "Irmãos Karamazov", em referência à turbulenta história da família eternizada pelo livro de Fiódor Dostoiévski.
Feito as personagens do escritor russo, Flamengo e Fluminense são irmãos. E são rivais. Têm, desde sempre, uma história única de enfrentamentos - mas que demorou para ser percebida em sua real grandeza. O primeiro encontro entre eles foi praticamente ignorado pela imprensa da época, que pouca atenção dava ao futebol.
O jornal "O Paiz" foi dos que mais destacaram o jogo. Deu uma coluna para ele. No texto, o periódico lembra que o Flamengo era favorito ao observar que "o resultado do campo da Rua Guanabara não foi absolutamente presagiado por nenhum amador do violento sport". A publicação não esquece a origem do Flamengo: "É natural; todos os leitores sabem perfeitamente que a constituição de tão formidável equipe foi resultado de uma desavença entre antigos conxosocios do mesmo centro, e que a parte refractaria, reunida a outros
'dissidentes', fizeram nascer o Flamengo."
'dissidentes', fizeram nascer o Flamengo."
O jornal diz ainda que o "meeting" entre os "teams" foi visto por "numerosa, selecta e expansiva assistencia" e, por fim, parabeniza o Fluminense, afirmando, de forma mais pomposa, aquilo que Nelson Rodrigues classificaria como "Irmãos Karamazov" anos depois: "Bravos mais ao Fluminense, que de um feito marcou duas victorias, derrotando um dos mais terríveis competidores da temporada presente, como póde-se bem dizer (esta foi a melhor) o seu outro 'Eu', de outr'ora...".
Entre os diários que noticiaram o jogo (o "Correio da Manhã", por exemplo, o ignorou por completo), ficou evidente o assombro com a vitória do Fluminense. "O jogo ficou aquém da expectativa, podendo-se considerar o seu resultado como uma sorpresa", escreveu o "Jornal do Commercio". Já o "Gazeta de Notícias" classificou o encontro como "dos melhores a que temos assistido, embora para sorpresa geral o Fluminense tenha derrubado seu competidor por 3 goals a 2".
Há quem pense, e é o caso de Nelson Rodrigues, que a história do Fla-Flu seria radicalmente diferente se o Flamengo tivesse comprovado seu favoritismo e vencido aquele jogo. A rivalidade, entende o cronista, não seria a mesma. Que ele feche este texto:
- Vejam como, histórica e psicologicamente, esse primeiro resultado seria decisivo. Se o Flamengo tivesse ganho, a rivalidade morreria, ali, de estalo. Mas a vitória tricolor gravou-se na carne e na alma flamengas. E sempre que os dois se encontram é como se o fizessem pela primeira vez.
Nenhum comentário:
Postar um comentário