19 de ago. de 2011

Achei! Sem clube, Lê lembra troca de churrasco por gol no Verdão em 99

Sem Romário desde novembro - afastado após participar da Festa da Uva, em Caxias do Sul -, o Flamengo entrou como franco-atirador para as finais da Mercosul de 1999, contra o timaço do Palmeiras, campeão da Libertadores e com nomes como Paulo Nunes, Júnior Baiano, César Sampaio e Arce. Com o Baixinho fora do clube, o técnico Carlinhos contava com quatro opções para o ataque: Leandro Machado, Rodrigo Mendes, Caio e Reinaldo. Lê, que acabou como autor do gol do título, na época aos 20 anos, nem pensava na possibilidade de disputar a decisão. Porém, dias antes da partida derradeira, teve de deixar um churrasco para atender um chamado do destino e fazer história em São Paulo, no Palestra Itália.
- Estava botando as carnes para assar quando o seu Chimello (José Eduardo, gerente de futebol à época) me ligou e disse que o Carlinhos tinha me chamado. Tinha acontecido aquele problema com alguns jogadores no Sul, mas não imaginava que seria chamado. Mas arrumei minha chuteira, minhas coisas e viajei - revelou Lê, que marcou o terceiro gol do Flamengo naquele 20 de dezembro de 1999, definindo o placar do jogo em 3 a 3.

Sem clube desde 2010 - quando, no Luverdense-MT, sofreu lesão na coxa -, Lê, hoje com 32 anos, lembra que na época a descrença em ser escalado era tão grande que até desdenhou de um sonho da mãe, Dona Wanda. O meia disse que quase ninguém acreditava no Rubro-Negro para aquela decisão. Segundo ele, havia até um acordo de divisão da premiação entre Fla e Verdão - reivindicado pelos cariocas - antes mesmo de ser definido o campeão.
- Viajei para São Paulo e nem tive tempo de falar com minha mãe. Quando cheguei lá, liguei e avisei: 'Mãe, vim para cá, mas a senhora nem precisa ver o jogo. A nossa equipe não está legal e eles têm um timaço... É Arce, Júnior Baiano, Cléber, César Sampaio, Paulo Nunes... Aquele time é um avião. Esquece, mãe, não dá para a gente.' Ela me respondeu: 'Você está brincando? Eu sonhei com um gol seu. Como não vou ver o jogo?" Rebati: "Não vou nem botar a caneleira." Ela encerrou: "Olha que Deus está guardando algo bom para você" - disse, otimista.

Choro após o gol e lembrança dos pais
Lê contou que ficou ttranquilo após desligar o telefone, baseando-se na certeza de que não participaria da decisão. Mas, inicialmente o 19º jogador chamado para a partida, ele entrou em campo no fim do duelo. Aos 38 minutos, uma tabela com direito a passe de calcanhar do companheiro Reinaldo resultou num dos gols mais importantes da história do Flamengo. Resultado: o camisa 22 do Fla naquela finalíssima levou as mãos à cabeça, chorou, lembrou da mãe e pensou em outra pessoa muito especial, o pai, seu Valdir, na época com 69 anos.
- Foi emoção demais. O Carlinhos já tinha colocado Rodrigo Mendes e Iranildo. Com isso, eu pensava: "Até parece que vou entrar..." Entrei e foi aquela coisa maravilhosa. Comecei a lembrar do que a minha mãe me disse. Depois, pensei no meu pai. Ele já era um senhor. A minha diferença para os meus dois irmãos mais velhos é de uns 20 anos, sou fruto do segundo casamento dele. Fiquei preocupado demais e imaginei: "Pronto, fiz o gol e vou matar meu pai. Que adianta garantir o título e infartar o coroa?" - brincou..
A calmaria veio horas depois da conquista, quando pôde ligar para casa e se certificar que o seu maior incentivador no futebol estava bem. Isso ainda reforçou mais a alegria do atleta, que recorda o esforço do pai para torná-lo um profissional da bola.
- Meu pai e minha mãe sempre foram meus alicerces. Ele sempre foi muito severo, mas atencioso demais também. Aprendi a bater faltas com ele. Seu Valdir colocava a camisa na trave e eu ficava cobrando. Também me mandava para chutar aquela bola de serragem, aquela pesadona, de futsal. Ele fez tudo para eu me tornar um jogador de futebol. Os três filhos homens dele não tinham dado para bola, ele queria um boleiro de qualquer jeito e conseguiu. Minha mãe me deu tudo, sempre cuidou de mim. Não posso deixar de registrar o nome deles. Ela cobra (risos). Escreve o nome dela aí, dona Wanda com W - brincou.

Se aposenta ou não?
Hoje aos 32 anos, Lê está sem clube desde 2010, quando deixou o Luverdense-MT após sofrer um problema no músculo anterior da coxa direita. Não sabe se abandona a carreira ou não, mas garante que está preparado para uma eventual aposentadoria. Apesar disso, lamenta o fato de ter jogado fora a oportunidade de se firmar num grande centro.
- Se eu parar não terei problemas, me aposento bem. Só fica uma ponta de frustração por não ter jogado o Brasileiro da Série A até uns 29, 30 anos. Eu tinha lenha para queimar, tinha qualidade, não sou demagogo. Mas foi culpa minha. Era muito garoto e subi na condição de melhor jogador da base. Fiz tantos gols quanto o Romário em um campeonato de juniores. O George Helal me defendia com unhas e dentes. A partir daí, passei a achar que estava acima do bem e do mal. Aí foi quando me perdi. Quis saber de muita farra e só aprendi a aproveitar noites de sono quando passei por dificuldades. Cheio de regalias, eu quis viver de um passado (o da divisão de base) que ainda não tinha construído, mas no profissional era só mais um. Mas não tem problema, cresci querendo vestir a camisa 10 do Zico, meu maior ídolo. Realizei esse sonho e joguei pelo maior do mundo - destacou.
Sofrimento em Angola
As adversidades às quais o jogador credita seu amadurecimento têm seu auge no ano de 2007, quando foi para o Petro Luanda, de Angola. Apesar de a Guerra Civil Angolana ter acabado oficialmente em 2002, ele garante ter vivenciado cenas de carnificina humana, além de muita miséria e deterioração do ser humano. Lá, apesar de garantir ter saído vacinado do Brasil, ainda contraiu duas cóleras.

- Minha mala foi extraviada e fiquei lá por seis meses com dois shorts e dois casacos. O clube me pagava bem, em dia, mas o shopping não tinha nada. Além do mais, não valia a pena sair na rua. Era bala voando o tempo inteiro. Jogar em time pequeno não é a mesma coisa, o sofrimento em Angola é muito maior. Cada família tinha direito a um fuzil para se defender. A alegria durava só por umas duas ou três horas, quando iamos jogar. Eu morava na concentração por opção própria, mas alguns garotos que ganhavam uns 300 dólares torciam para ficar lá. Só assim fariam três refeições por dia, era muito doloroso. A desigualdade por lá é muito maior do que a do Brasil. Lá, ou você é milionário ou é paupérrimo. Fui na casa de um jogador que hoje, graças a Deus, está na seleção angolana e arrebentando no Panathinaikos. É o Manucho, fazíamos uma dupla de ataque legal. Ele morava num quadrado, não dava nem para chamar de casa aquilo, e o banheiro era muito pior que um lavabo - recordou, emocionado.
Abraço aos amigos dos anos 90 e à família
Ciente de que a aposentadoria se aproxima, Lê encerra sua conversa agradecendo aos amigos oriundos do futebol e aos familiares mais próximos. Ele cita esse grupo de pessoas como as responsáveis por suas maiores alegrias no esporte e na vida.
- Julio Cesar, Juan, Reinaldo e Marco Antônio (lateral-esquerdo reserva no título carioca de 1999) são caras que eu nem vejo mais, porém os tenho no coração. E sei que eles também têm carinho por mim. O Athirson também foi importante demais. O goleiro Marcelo Leite era mais velho que eu, mas também me deu muita força. Já falei dos meus pais, mas preciso estender todo esse agradecimento a Conceição, minha irmã, que foi como uma mãe, e ao meu irmão Sapato, o Carlinhos. Ele tem uns 20 anos a mais do que eu e sempre me levou para tudo. Lembro que na final de 1992 (do Brasileiro, contra o Botafogo) estávamos do lado da Raça e choramos muito quando o Junior fez aquele golaço. É muita coisa bacana que lembro - encerrou, nostálgico.




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